“Ah, se fosses algum outro nome! O que significa um nome?”
À pergunta do poeta inglês Shakespeare (1564-1616), a mídia tradicional brasileira e o Governo do Estado do Rio de Janeiro trouxeram uma resposta bastante objetiva: um nome pode significar morte certa, sem remorsos. No caso, o nome é “bandido”. Há quem esteja chamando de “narcotraficante” nos dias de hoje, o que é outra discussão, mais internacionalizada, mas o “narcotraficante” é também, em essência, o “bom e velho” bandido.
O que é, afinal “bandido”? Os primeiros grandes dicionários da língua portuguesa (Bluteau, 1712, e Silva, 1789) informam o seguinte: são salteadores, fugitivos, desterrados; do italiano “banditi”, que significa ladrões de estradas; “ver ‘Banido’”, alertam os autores. Então, o que são “banidos”? Uma palavra de 1371 criada para caracterizar aquele que foi exilado, expatriado por sentença, o que foi expulso. Os mesmos dicionários clássicos também dizem o seguinte: “malfeitor ausente, condenado pelos juízes da maior alçada; pode ser morto por qualquer do povo, e muitas vezes se promete prêmio a quem o matar” e ainda “degradar da sociedade, por decreto publico, no qual se concede a qualquer a impunidade se matar ao banido”. Agora, ficou claro.
Reinaldo Azevedo (foto acima) ontem, aos 19 minutos e 11 segundos do seu programa "O É da Coisa de 28/10/2025, com Reinaldo Azevedo (transmitido pela Band News FM e Band News TV), disse: Matança no RJ; proselitismo político vil de Castro" colocou muito bem a questão, enquanto corrigiu o vício de linguagem incorporado por um dos apresentadores da emissora. Antes da notícia, com acesso ao texto que seria lido, ele já se adianta: “60 homens mortos, aí, tá, em confronto? 60 pessoas mortas em confronto, ok? 60 pessoas mortas em confronto. Quando a gente chegar ali. Vamos lá”. Mesmo assim, o jornalista que se adapta à realidade de cada empregador cometeu o deslize: “Atualizando os números, 60 bandidos mortos em confronto, dois eram…”
“Não”, interrompe Reinaldo, “60 pessoas mortas. 60 pessoas”. E segue: “Isso é importante como critério aqui. Eu não sei se são bandidos. A linguagem também é muito importante, porque a imprensa trata essas coisas. Eu sei que não fomos nós… A hora que tiver a ficha de cada um dos mortos… Porque, senão, além da pessoa ser preta e pobre, ela perde direito a uma história, ela perde direito a ter a sua ficha, a sua biografia, ela morre, ela vira bandida. E eu não sei se são. Todos estavam trocando tiro com a polícia mesmo?”. Ele explica o rompante: “Isso é uma irritação intelectual”.
Palavras importantes essas do Reinaldo, a irritação é tão relevante quanto. Cabe lembrar ainda de dois fatores muito importantes:
1) bandidos também são pessoas;
2) só há uma previsão legal de pena de morte no Brasil, ainda regido pela Constituição Federal de 1988 que, no seu artigo 5º, entre outras coisas, diz: “não haverá penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX - compete privativamente ao Presidente da República declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional”.
Vivemos uma guerra, é verdade, mas não é essa prevista na Constituição. Ou seja, o que houve ontem no Rio de Janeiro é chacina, genocídio, projeto político de extermínio daqueles que se desejam banir, exterminar.
Quando repetimos uma mesma expressão, sem refletir muito sobre ela, milhares de vezes, ela vira vírgula e, realmente, acabamos deixando de pensar sobre o que essa palavra significa e que consequências ela pode provocar. “Ah, mas são apenas palavras”, dizem algumas pessoas. Já pararam para pensar sobre quais seriam as consequências caso alguém entrasse num cinema cheio e gritasse “fogo!”?
Texto de Angélica Fontella
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| foto: Rennan Rebello | 
Quem é Angélica Fontella
Jornalista, formada pela Escola de Comunicação da UFRJ, mestra e doutora em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da mesma instituição e pesquisa a relação entre jornalismo de sensações, história, memória e violência na sociedade brasileira. É cofundadora do podcast Passadorama, que discute história, cultura e política e autora do livro “Um corpo estendido na capa: jornalismo de sensações e cenas de linchamento” (2024, Metanoia Editora).
Nascida na cidade do Rio de Janeiro em 1987, foi criada nos bairros do subúrbio carioca e hoje atua como chefe da produção de jornalismo da Sputnik Brasil, Rio de Janeiro.
 







