quarta-feira, 15 de julho de 2020

À margem de qualquer ajuda: pessoas em situação de rua têm auxílio emergencial cortado em meio à pandemia


Em situação de rua há oito anos, o reciclador Claudemir Bezerra dos Santos, de 38 anos, conseguiu receber, com a ajuda do Padre Julio Lancellotti, da Paróquia de São Miguel Arcanjo, na Zona Leste de São Paulo, a primeira parcela do auxílio emergencial de R$ 600. No entanto, o alívio financeiro durou pouco. Quando foi sacar a segunda parcela, Claudemir recebeu a notícia de que seu benefício havia sido cancelado.

— Falaram que eu estava preso, mas eu já estou na rua há oito anos. Vou para o Fórum certinho a cada três meses, não dou trabalho pra ninguém, faço minha reciclagem. É uma injustiça, foi um abalo muito grande porque esse dinheiro ajudaria bastante — lamentou o catador, que tem esposa e quatro filhos, com quem divide "um barraquinho".

Ele contou que ganhava cerca de R$ 30 por dia como reciclador, mas que durante a pandemia o valor chega a cair pela metade em "dias ruins". Com isso, tem recorrido à ajuda do Padre Julio, que distribui cestas básicas e itens de higiene a pessoas em situação de rua.

O pároco identificou dezenas de casos de pessoas que, assim como Claudemir, receberam a primeira parcela do auxílio emergencial, mas tiveram a segunda parte do benefício suspensa. Segundo ele, o auxílio é cancelado ou volta para análise, muitas vezes sem que um motivo seja informado.

— Eles ficam muito chocados porque passam por toda a experiência de alugar um lugar para morar numa pensão e depois têm que voltar para a rua. Alguns compraram panos para vender, outros chegaram a comprar carroças, parceladas em duas vezes, para trabalhar como recicladores. Ficam desesperados, é uma frustração terrível. É um impacto muito corrosivo que esse cancelamento do auxílio tem para essas pessoas. É como se o governo desse o doce, e na hora que a pessoa está comendo, desse um tapa na mão — explica o padre.

Falhas na base de dados do sistema penitenciário
Para Juliana Hashimoto, advogada da Pastoral do Povo da Rua, uma das suspeitas é que a suspensão do auxílio esteja sendo feita para pessoas com antecedentes criminais, como é o caso de Claudemir. Segundo o padre Julio, cerca de 42% da população de rua de São Paulo já passou pelo sistema penitenciário.

O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, chegou a reconhecer em junho que havia falhas na liberação do pagamento a presos do regime semiaberto, aberto e pessoas que já cumpriram suas penas, em razão de problemas na atualização da base de dados do governo. Pela lei, essas pessoas têm direito ao benefício, que é vetado apenas a presos do regime fechado e foragidos.

— Muitas dessas pessoas em situação de rua já cumpriram sua pena há cinco, dez anos atrás, e já são até réus primários novamente. A base de dados teria que ser atualizada de forma recorrente, porque as situações da vida são dinâmicas — aponta a advogada.

Por meio de uma parceria com o Departamento Jurídico 11 de Agosto, da faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a Pastoral do Povo da Rua está ajudando essas pessoas a entrarem na Justiça para conseguir o pagamento das parcelas do auxílio emergencial que foram suspensas. Segundo Juliana, o projeto já ingressou com mais de 60 casos referentes a problemas com o recebimento desse benefício.

Vias judiciais pouco efetivas
No Rio de Janeiro, a situação é semelhante, contou o defensor regional de direitos humanos no estado Thales Arcoverde Treiger. Segundo ele, a Defensoria Pública da União (DPU) está sobrecarregada com ações envolvendo auxílios emergenciais negados e suspensos indevidamente, e as vias judiciais têm sido pouco efetivas.

— A via judicial ficou muito difícil, é pouco efetiva. Propor a ação é fácil, mas precisamos de um juiz que nos dê ganho de causa. O pouco que conseguimos, a União reverteu nos tribunais federais.

Segundo ele, entre as conquistas da DPU estão o acordo entre o Ministério da Cidadania e os Correios para que a população sem acesso aos meios eletrônicos, como os moradores de rua, pudessem se cadastrar para receber o auxílio. O período para fazer a inscrição, porém, foi encerrado no último dia 2 de julho.

A iniciativa, disse Treiger, surgiu depois de uma ação proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) da Baixada Fluminense para que a população hiper vulnerável fosse acolhida pelo auxílio emergencial, por meio de um sistema simplificado, que não exigisse acesso digital.

O defensor público afirma ainda que falta "um pouco de boa fé" para entender o auxílio através de uma ótica mais ampla, e que é preciso ter senso de coletividade para perceber que as condições de vida da população em situação de rua afetam a todos.

— O que temos visto é a sociedade civil muito engajada com doação de máscaras e alimentação a essas pessoas. Isso é muito importante, mas o que está faltando é compreensão de que o auxílio não é um direito que beneficiará apenas aquela determinada pessoa. Na medida em que a pessoa em situação de rua recebe o dinheiro, ela poderá ficar isolada sem ter que ir para a rua, e vai estar preservando a saúde de todos. Existe esse mito de que estamos protegidos na medida em que somos privilegiados, mas isso não existe — apontou.

Procurado, o Ministério da Cidadania informou que o auxílio emergencial está sendo pago a mais de 65 milhões de brasileiros, e que os recursos investidos nessa ação passam dos R$ 121 bilhões.

"A suspensão dos pagamentos do auxílio é explicada pela análise e reanálise dos cadastros em que foram sinalizadas possíveis divergências, a partir da atualização das bases de dados utilizadas para concessão do auxílio. Confirmado que o cadastro respeita os critérios para o recebimento, os recursos serão liberados", explicou.

O ministério também informou que fez acordo com a Defensoria Pública da União (DPU) para realizar procedimentos extrajudiciais, o que beneficia os moradores de rua.

Governo restringe acesso de familiares de presos ao auxílio emergencial de R$ 600



O Ministério da Cidadania está restringindo o acesso de familiares de presos ao recebimento do auxílio emergencial de R$ 600 pago pelo governo federal a trabalhadores informais. A informação consta de um ofício enviado pela pasta ao Ministério Público Federal (MPF).

Segundo o ministério, há 39.251 requerimentos que foram apresentados por detentos ou seus parentes e estão parados por apresentarem "complexidade de cenários". Já a Dataprev — empresa do governo federal responsável pelo processamentos das solicitações — informou que esses pedidos estão retidos por "para processamento adicional".


No ofício enviado ao MPF, porém, o Ministério da Cidadania responde ao questionamento sobre a existência de restrições da concessão do auxílio aos parentes de detentos de presídios e abrigos.

"Para a identificação de detentos, o Ministério da Cidadania definiu a utilização das bases de dados do DEPEN/MJ (Departamento Penitenciário Nacional) e do regime fechado de São Paulo. Ficou estabelecida, pelo Ministério da Cidadania, ainda que de forma não definitiva, a restrição da concessão do Auxílio Emergencial a requerente ou membro de grupo familiar constante das bases de dados referenciadas", diz o ofício, que acrescenta ainda que essas pessoas serão enquadradas na classificação "retidos".

Pela lei que criou o auxílio emergencial de R$ 600, apenas familiares de presos que recebem o auxílio-reclusão deixariam de ter direito ao benefício. Isso porque a lei impede o acúmulo de benefícios previdenciários (aposentadoria, pensão por morte e auxílio-reclusão), assistenciais (BPC/Loas), seguro-desemprego e programas de transferência de renda federal. A exceção são os beneficiários do Bolsa Família.

Procurado, o Ministério da Cidadania afirmou nesta quinta-feira (dia 14) que familiares de detentos não têm restrição ao recebimento do auxílio-emergencial, apenas presos e beneficiários do auxílio-reclusão. A Dataprev também declarou, por meio de nota, que "não negou auxílio para parentes dos detentos. Os requerimentos estão retidos para processamento adicional", explicou a empresa.

Esse "processamento adicional", segundo a Dataprev, se refere a cenários não previstos inicialmente e que demandam novas regras para seu adequado tratamento.

De acordo com a empresa, é preciso checar se o familiar do detento não está recebendo outro benefício da União como o auxílio-reclusão.

"As equipes do Ministério da Cidadania seguem trabalhando com urgência para finalizar a regra desse processamento adicional. A Dataprev aguarda a definição da medida para finalizar o processamento. O objetivo é garantir que o recurso chegue a quem precisa e evitar fraudes dos pedidos", reforçou.

Dos 98 milhões de requerimentos processados pela empresa, foi identificado 1,5 milhão de CPFs que apresentaram complexidade de cenários, ou seja: 1,5%. Deste total (1,5 milhão), 39.251 requerimentos foram apresentados por detentos ou contém detentos na sua composição familiar.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) informou que há 32.342 auxílios-reclusão ativos no país atualmente, segundo os dados de abril.