Em jantar que reuniu em um restaurante do Rio de Janeiro militares, policiais, motoqueiros, evangélicos e terraplanistas para celebrar a candidatura do general da reserva e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a deputado federal, um assunto mobilizou a plateia tanto quanto (ou mais) do que o anúncio da campanha: Maricá, cidade do litoral fluminense governada há 14 anos pelo PT.
Mal a ser extirpado, segundo os convivas, o município de 150 mil habitantes foi descrito como uma “ameaça”, “polo de dominação comunista”, projeto do Foro de São Paulo e semente da Ursal, a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, um chiste da socióloga Maria Lúcia Barbosa levado a sério pelo folclórico Cabo Daciolo, que popularizou a sigla nas eleições presidenciais de 2018. Daciolo, ficou evidente no jantar, não é o único preocupado com a infiltração socialista. Na noite que marcou o início de sua aventura eleitoral, Pazuello discursou: “Senhores, eles estão trabalhando nisso há mais de 20 anos para implantar o bolivarianismo em toda a América do Sul”. Alguém gritou de uma das mesas: “É um absurdo o que fazem em Maricá. Até ônibus de graça tem lá”.
E pior, além de gratuitos, são todos pintados de vermelho. A tarifa zero no transporte público, exibida em letras garrafais nos ônibus, é um dos marcos da cidade que se tornou famosa no mundo por seus experimentos sociais. Outros, um pouco menos visíveis para quem visita o município, mas de grande impacto na população local, são o programa de renda básica, o banco comunitário e a moeda municipal, a mumbuca, equiparada ao valor do real. Após duas gestões de Washington Quaquá, hoje vice-presidente nacional do PT, e passada quase metade do segundo mandato do sucessor, Fabiano Horta, Maricá aos poucos tem deixado de ser uma cidade-dormitório, vazia e sem perspectiva. Nos últimos dois anos, a localidade figurou entre aquelas que proporcionalmente mais geraram emprego no País, segundo dados oficiais. É também a maior beneficiária dos royalties do pré-sal: foram 2,4 bilhões de reais em 2021.
O incremento do caixa, via royalties, permitiu à prefeitura entrar em uma nova fase, com ênfase na produção científica inovadora e na estruturação de um polo industrial em torno do futuro Terminal Portuário de Ponta Negra. “Quando a prefeitura fez a opção pela construção de uma política de renda básica com uma moeda local, conseguiu, além de combater a miséria, a pobreza e a desigualdade, fazer com que do primeiro ao último centavo destinado a esse programa circulasse na cidade. A partir daí a economia de Maricá passou a responder de maneira muito clara. O setor de comércio e serviço começou a perceber que havia uma demanda adicional a surgir”, diz Igor Sardinha, secretário de Desenvolvimento Econômico.
"Depois de garantir programas de renda básica, a prefeitura aposta agora na ciência e tecnologia"
A pandemia da Covid-19 mereceu resposta rápida, por meio do Programa de Amparo ao Trabalhador. “A prefeitura garantiu a mais de 20 mil trabalhadores informais um salário mínimo pago em mumbucas. Ao longo do tempo, com a redução do contágio, oi diminuído. Hoje, o programa ainda está em vigor e paga 600 mumbucas”, explica Sardinha. Prorrogado até o fim deste ano, o PAT beneficiou 21 mil autônomos e profissionais liberais. A administração criou ainda o Programa de Amparo ao Emprego, iniciativa em parceria com os empresários locais para evitar demissões durante a pandemia. “Um cadastramento subsidiou o pagamento de um salário mínimo mensal por trabalhador. Se a empresa pagasse mais que o mínimo a determinado funcionário, caberia a ela complementar o salário, e a contrapartida é que não poderia demitir até seis meses depois do encerramento do pagamento pela prefeitura. Com isso, foram preservados mais de 300 empregos formais.” Outra medida foi a criação do programa de microcrédito Fomenta Maricá, que desde o início do surto do coronavírus destinou 17 milhões de reais às MEIs, microempreendedores individuais. Nesse período, Maricá teve mais empresas abertas do que fechadas, segundo a Junta Comercial do Rio de Janeiro.
Para a população mais pobre, a bandeira mais visível da gestão é, porém, o Banco Mumbuca, primeira instituição financeira comunitária do Brasil. Criado por Quaquá em 2013, o banco iniciou as atividades com o pagamento de 70 mumbucas, moeda que só pode ser usada no comércio local, a 3 mil famílias registradas no Cadastro Único do governo federal e com limite de renda de até um salário mínimo. Em 2015, a partir do recebimento dos royalties, foi possível aumentar o número de beneficiários para 14 mil e o valor repassado. “Passamos a pagar 130 mumbucas para o responsável pelo núcleo familiar, para as mulheres gestantes naquela família, até o filho completar 1 ano, e para os jovens de 15 a 29 anos”, conta Manuela Mello, presidente do banco.
Em 2017, a adoção do aplicativo da Rede Brasileira de Bancos Comunitários fez com que a taxação sobre o uso da mumbuca também se revertesse em benefícios da cidade. “Passamos a cobrar 2% e o comerciante credenciado, que antes recebia 30 ou 45 dias depois, passou a receber na hora. Toda a taxação vai para um fundo de uma associação ligada ao banco e é distribuída para a população em forma de crédito, projeto e patrocínio”, explica Mello. O banco também concede créditos de até 2 mil mumbucas a juro zero, independentemente da renda do cliente, e liberou o equivalente a 1,6 milhão de reais em créditos entre 2018 e 2021. O objetivo agora é expandir o uso da moeda. “A universalização não está muito distante, pois temos 68 mil clientes.”
Outro salto qualitativo que a “gestão comunista” pretende dar passa pela criação, em 2019, do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação de Maricá. Convidado para o comando do instituto em 2020, o ex-ministro Celso Pansera afirma que seu primeiro objetivo foi criar uma cultura da ciência na cidade: “Abrimos muitas vagas de mestrado e doutorado. Temos contratos assinados com a UFRJ na área de Engenharia de Produção, estamos fechando com a Universidade Rural, o Instituto Nacional de Tecnologia e a Unirio um conjunto de ações de pós-graduação. Também lançamos nosso próprio programa de iniciação científica, com 48 alunos bolsistas e bolsa de 600 reais”. Neste ano, Maricá vai inaugurar a primeira de quatro Casas da Ciência. “É um local com planetário, sala de aula imersiva e um espaço maker com impressoras 3D e uma série de ações para a juventude aprender a criar games, entre outros trabalhos com computador. A ideia é atender as escolas da rede municipal de ensino”, diz Pansera.
"Maricá protegeu os vulneráveis durante a pandemia e resolveu de forma criativa o dilema entre saúde e economia"
Segundo o ex-ministro, o objetivo é desenvolver em diversas frentes o conceito de empreendedorismo, com inovação social em uma relação de produção horizontalizada e sem a participação de atravessadores. O trabalho será realizado por incubadoras, como a que cuidará do programa de produção de alimentos orgânicos Bem Viver Alimentar. “Vamos melhorar a qualidade das sementes e das plantas e ampliar a produtividade de feijão guando, tomate, banana, aipim, e abóbora.” A prefeitura aposta ainda na criação de um polo de produção de jaca na região. “Existe uma demanda mundial enorme pela jaca, por conta da produção de alimentos veganos. Vamos começar a cadastrar produtores em agosto, para comprar a produção em fevereiro do ano que vem, em uma parceria com a empresa Açougue Vegano”, diz o ex-ministro.
Outra incubadora cuida da economia solidária, que organiza as famílias dependentes de complementação de renda e donas de algum tipo de negócio. “Tem o botequim, o salão de beleza, a vendedora de salgadinhos, a explicadora. Queremos organizar e desenvolver uma série de economias locais a partir dessa incubadora. E abrir microcrédito para que funcionem também de uma forma mais institucionalizada”, afirma Pansera. “O potencial da região tem de ser organizado e inovado para que gere emprego e fixe os moradores.”
No quesito inovação, a menina dos olhos da gestão é o ônibus elétrico criado em parceria com a UFRJ. São três modelos em desenvolvimento – dois híbridos movidos a eletricidade e hidrogênio, ou a eletricidade e etanol, e um modelo puramente elétrico – com estratégia de industrialização e montagem em Maricá. “Aproveitamos os recursos que hoje chegam à cidade por conta de uma matriz energética poluente para investir em pesquisa e inovação e no desenvolvimento de uma indústria não poluente no pós-royalties. Nossa empresa pública de transportes está comprometida a comprar esses ônibus, que, quando estiverem plenamente desenvolvidos, serão inseridos em nossa frota”, garante Sardinha. Maricá, adianta o secretário, pretende disputar mercados e vender seus ônibus elétricos no Brasil e no exterior.Avanço. Em parceria com a UFRJ, a cidade aposta na produção de ônibus elétricos. Horta (alto) sucedeu Quaquá – Imagem: Prefeitura de Maricá/RJ
O economista e professor da UFRJ Mauro Osório, especialista em Planejamento Urbano e Regional, afirma que o mérito de Maricá foi conciliar a pandemia com a questão econômica: “Com os royalties, criou-se uma série de políticas muito bem concatenadas, que permitiram à cidade fazer aquilo que o governo federal, que tem muito mais recursos, deveria ter feito, ou seja, dar condições de ficar em casa a quem não tivesse meios para tanto. Maricá é um dos municípios que fizeram o inverso do governo federal, e fez o correto”. Além disso, a prefeitura apostou na vacinação em massa e, segundo levantamento da UFRJ, tinha 40% da população imunizada em julho do ano passado, reduzindo à metade a incidência geral do Coronavírus, em um dos melhores desempenhos do Brasil.
"Horta, o prefeito: “Não há evolução solitária de nenhum ente numa sociedade que precisa combater a desigualdade”
Para Osório, o maior desafio é trabalhar a transição energética: “Mantida a atual regra de royalties, Maricá terá a perspectiva de algumas décadas para construir uma estrutura produtiva que permita à cidade ir progressivamente dependendo menos dos royalties para, no futuro, não ter uma queda brusca de receita por habitante”. O chamado “pós-royalties” é planejado pela prefeitura. “Temos uma série de políticas públicas que dialogam com o futuro. Vamos encerrar a atual gestão deixando bases fortes para que Maricá tenha uma economia que caminhe de forma perene e autônoma, independentemente da questão dos royalties”, estima Sardinha.
A cidade quer investir em um processo de industrialização a partir do gás natural da Bacia de Santos. “Maricá é o ponto terrestre com menor distância para os megacampos do pré-sal e isso será fundamental a partir da entrada em operação da Rota 3 de escoamento de gás da Petrobras para o Polo Petroquímico de Itaboraí. Após dez anos de uma longa batalha judicial, o porto tem hoje sua licença de instalação emitida pelo Instituto Estadual do Ambiente e está apto a iniciar suas obras”, diz o secretário. A prefeitura vai montar um parque industrial em uma área a 8 quilômetros do futuro porto. Uma legislação com incentivos fiscais a fábricas, a Desenvolve Maricá, foi aprovada pelos vereadores. A recente atualização da Lei do ICMS reduziu a alíquota de 20% para 2%. O futuro polo da cidade é um dos quatro eixos do programa Industrializa Rio, do governo estadual. “Tendo o porto, o gás e um parque industrial, entendemos que há um potencial fantástico de desenvolver a cidade”, vislumbra Sardinha.
Maricá, diz Horta, o prefeito, continuará a apostar em um modelo de desenvolvimento baseado na garantia de direitos: “As políticas de renda básica que se vinculam à moeda social, o transporte tarifa zero e o passaporte que garante a entrada dos jovens na universidade serão objetivamente pensados no longo prazo e do ponto de vista da natureza orçamentária e fiscal. A cidade construiu, a partir dos royalties do petróleo, uma garantia no longo prazo de que essas políticas possam estar estabelecidas”. A diferença das políticas construídas em Maricá com relação ao governo Bolsonaro, afirma, passa pela inclusão dos mais pobres no orçamento e pela certeza dos direitos como valores de uma sociedade que busca combater a desigualdade: “Queremos que o orçamento público seja um fomentador, um gerador desses elementos”
Segundo Horta, Maricá “aposta no sentido inverso” do que é feito hoje pelo governo federal: “Quando ampliamos a possibilidade de os moradores terem acesso a renda e a políticas que facilitem e melhorem suas vidas é que construímos uma sociedade que vai conjuntamente evoluindo. Não há evolução solitária de nenhum ente numa sociedade que precisa combater a desigualdade”.
Pansera aposta na futura replicação do modelo de Maricá pelo Brasil afora e brinca com as preocupações da tropa de Pazuello: “A população vê agora a calçada benfeita, a rua asfaltada, a iluminação melhor e o ônibus de graça. Daqui a um tempo vai perceber esse conjunto de novas ações. Maricá teve três gestões que melhoraram os aspectos físicos da infraestrutura da cidade e agora intensifica o planejamento da parte da inteligência, da ciência, de olho nas mudanças do futuro. A ameaça comunista não somente tem dado certo, como está também em desenvolvimento”.
baseado em matéria de Maurício Thuswohl - Repórter da edição impressa de CartaCapital no Rio de Janeiro