sábado, 6 de junho de 2020

Novo secretário do Ministério da Saúde tenta tornar mortos por Covid-19 invisíveis, dizem secretários estaduais

Carlos Wizard, que assumirá a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, afirmou que a pasta vai recontar o número de óbitos

Covas rasas em cemitério público de São Paulo
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) divulgou nota, neste sábado, em repúdio às declarações de Carlos Wizard, que assumirá a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. À coluna da jornalista Bela Megale, no GLOBO, ele disse que o Ministério da Saúde vai recontar o número de mortos no Brasil por Covid-19. Segundo ele, os dados atuais seriam "fantasiosos ou manipulados"

A divulgação dessas informações já havia entrado no centro do debate político no meio da semana, depois que o governo alterou os horários de publicação da contagem diária de vítimas, que passou a ser feito após o término dos principais telejornais do país, na quarta-feira. Pelo Twitter, o presidente Jair Bolsonaro comentou, na manhã deste sábado, que a mudança seria uma maneira de "evitar subnotificação e inconsistências".

A nota assinada  presidente do Conass, Alberto Betrame, diz que, "ao afirmar que secretários de Saúde falseiam dados sobre óbitos decorrentes da Covid-19 em busca de mais 'orçamento', o secretário, além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias".

À coluna de Bela Megale, Wizard disse que o número de mortos, que ontem chegou a 35.026 pessoas, conforme dados oficiais, estaria inflado, apesar de pesquisas já terem demonstrado e de o próprio Ministério da Saúde ter admitido, em outras gestões, que há um grande número de subnotificações.

– Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos. – afirmou Wizard.

Para o Conass, "a tentativa autoritária, insensível, desumana e anti-ética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19, não prosperará".

"Nós e a sociedade brasileira não os esqueceremos (os mortos) e tampouco a tragédia que se abate sobre a nação. Ofende secretários, médicos e todos os profissionais da saúde que têm se dedicado incansavelmente a salvar vidas. Wizard menospreza  a inteligência de todos os brasileiros, que num momento de tanto sofrimento e dor, veem seus entes queridos mortos tratados como 'mercadoria'. Sua declaração grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco. Não somos mercadores da morte", completa a nota do Conass.

Motivação
Para o presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), José Luis Gomes do Amaral, o problema não é o anúncio em si de uma revisão de dados do Ministério da Saúde sobre os mortos por Covid-19, mas os motivos alegados para fazer isso.

— Fazer uma revisão não é ruim. Mas, para mudar a sistemática de contagem, é importante detectar que realmente há erros a serem corrigidos. Mudar o sistema de aferição apenas em função de uma especulação pode prejudicar todo um processo de avaliação da evolução da epidemia no país — diz Amaral.

A Associação Paulista de Medicina, por exemplo, é uma das instituições que utiliza os dados oficiais do Ministério da Saúde para estudos da pandemia, diz o médico. Ele teme que a comunidade médica e científica fique sem real noção sobre fatalidades e casos do novo coronavírus com a alteração na contagem.

— Como vamos calcular a evolução da doença ao se desconsiderar o sistema anterior? Não parece haver razão para que se modifique essa sistemática. A impressão entre médicos, ao analisar as estatísticas à luz daquilo que veem nos hospitais em que trabalham, é de que existe subnotificação de casos, e não notificação em excesso — afirma.

Amaral diz que desconhece casos de médicos forçados a incluir Covid-19 como causa de morte em atestados de óbito de pacientes sem confirmação da doença, situação que chegou a ser citada por Carlos Wizard.

O presidente da APM lembra que muitos países foram criticados, no início da epidemia, por escamotear informações:

— É um perigo. Houve críticas imensas a uma possível ocultação de dados por outros países. Se nosso país incidir em uma situação como essa, será um equívoco.

Demora na divulgação de dados
Com recordes em número de casos e mortes registradas diariamente, o Ministério da Saúde vem atrasando a divulgação desses dados, que só foi feita depois de 21h30, desde quarta-feira, após os principais telejornais do país finalizarem suas edições.

Ao falar sobre a mudança, o presidente Jair Bolsonaro disse, em post no Twitter, que a divulgação entre 17 h e 19 h, como era feita anteriormente, apresentava risco subnotificação. "Os fluxos estão sendo padronizados e adequados para a melhor precisão", escreveu, citando nota do Ministério da Saúde.

A Hora da Ciência: Enquanto a vacina não vem

Na noite desta sexta-feira, porém, o presidente Jair Bolsonaro foi questionado sobre o porquê da demora da divulgação dos dados e, sem que ninguém tivesse feito alguma menção a qualquer órgão específico, ele afirmou:

— Acabou matéria do Jornal Nacional.

Em nota, a emissora afirmou que: "O público saberá julgar se o governo agia certo antes ou se age certo agora. Saberá se age por motivação técnica, como alega, ou se age movido por propósitos que não pode confessar mais claramente. Os espectadores da Globo podem ter certeza que serão informados sobre os números tão logo sejam anunciados pq o jornalismo da Globo corre sempre para atender o seu público".

Após o término do Jornal Nacional, durante a exibição da novela Fina Estampa, a tramissão foi interrompida para a entrada de um plantão do telejornal em que o apresentador William Bonner anunciou os números oficias do Ministério da Saúde quando o órgão os divulgou.

Além de mexer nos horários, o Ministério da Saúde também modificou a forma de divulgar os dados da epidemia causada pelo novo coronavírus e, agora, não informa mais o total de casos e óbitos do país, nem por estado. A mudança no formato não foi informada previamente. Além disso, o portal mantido pelo ministério com dados atualizados da Covid-19 foi tirado do ar.

Desde abril, o ministério divulgava, diariamente, uma lista contendo o total de casos e mortes causadas pela doença registradas nas últimas 24 horas. Os dados eram segregados por estado e traziam uma totalização nacional. Após a pasta anunciar as mudanças, houve reações nas redes sociais e manifestações de autoridades.

"Com as novas dificuldades para divulgar dados nacionais de infectados, curados e óbitos da Covid-19, as instituições devem ajudar. Cogito propor ao @TCUoficial e aos tribunais de contas estaduais que requisitemos e consolidemos dados estaduais para divulgação diária até 18h", escreveu no Twitter o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas.

Chefe do Laboratório de Virologia Molecular do Departamento de Genética da UFRJ, Amilcar Tanuri avalia que a mudança na divulgação dos índices de contágio da Covid-19 contribuirá para a "desinformação" da população, que já está insegura com os rumos da pandemia.

— Acho que essas medidas somente confundem a população e colocam um manto de desconfiança e desinformação nos dados. Além disso, torna os dados da pandemia brasileira mais confusos para a população, em um momento em que algumas cidades estão relaxando o isolamento social e a população está ainda insegura — explica o virologista. — Precisamos de transparência e uma melhor apresentação e analise dos dados.

Novas aglomerações
Pouco depois da postagem sobre as mudanças no Twitter, Bolsonaro acompanhou uma blitz da Polícia Rodoviária Federal em Planaltina, região administrativa do Distrito Federal. O presidente foi de helicóptero até o local, onde ficou por pouco mais de uma hora. Sem máscara, ele cumprimentou e tirou fotos com apoiadores, causando aglomerações. Na ocasião, foi questionado sobre assunto, mas não quis responder.

No período em que Bolsonaro estava no local, os agentes da PRF não pararam nenhum veículo. O presidente também tirou fotos com alguns dos agentes e gravou um vídeo destinado a 600 pessoas aprovadas em um concurso da corporação que foram convocados recentementes. Atendendo a pedidos do grupo, Bolsonaro conseguiu que eles fossem convocados antes da sanção do projeto de socorro a estados, que proíbe novas contratações.