sábado, 11 de maio de 2019

Falta de remédios ameaça dois milhões de pacientes no Brasil

Segundo relatórios, o país vive a maior crise de sua História na oferta de medicamentos para o sistema público de saúde


No dia 12 de março de 2019, um ofício do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) endereçado ao gabinete do ministro Luiz Henrique Mandetta avisava: a situação dos estoques públicos de medicamentos em todos os estados da federação é crítica.


O documento traçava um panorama do desabastecimento, problema que se arrasta há anos, mas se agravou nos primeiros meses do governo Jair Bolsonaro.

De um total de 134 remédios que são distribuídos obrigatoriamente pelo Ministério da Saúde, 25 estão com estoques zerados em todos os estados do país e outros 18 devem se esgotar nos próximos 30 dias.

O GLOBO analisou relatórios de dez secretarias estaduais de Saúde e outro documento do Conass encaminhados ao governo federal cobrando providências para o problema. De acordo com eles, o país vive a maior crise de sua História na oferta de medicamentos para o sistema público de saúde.

Dois milhões de pacientes dependem de remédios que estão em falta ou que vão acabar nos próximos dias, segundo o Conass. Dentre os já esgotados, estão drogas para tratamento de doenças como câncer de mama, leucemia em crianças e inflamações diversas.


Também falta medicação para pessoas que receberam transplantes recentes de rins e de fígado. Sem isso, é possível que órgãos transplantados precisem ser removidos e descartados, já que as drogas servem para que o corpo do receptor consiga se adaptar. Em apenas em dez estados, incluindo Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, mais de 20 mil transplantados dependem dos medicamentos fornecidos pelo governo federal.

O Ministério da Saúde afirma que, desde janeiro, tenta regularizar o abastecimento de medicamentos adquiridos. Segundo a pasta, muitos processos de compra não foram iniciados no tempo devido e, por isso, “as entregas estão ocorrendo de modo intempestivo”.

Ao todo, 12 processos de aquisição foram finalizados e 52 estão em andamento. “Assim, a expectativa é de assinatura dos contratos de compra para regularização do abastecimento de grande parte dos fármacos ainda no mês de maio”, diz a nota.

Alertas foram emitidos

O Ministério da Saúde já foi alertado diversas vezes sobre a escassez em que se encontram os estados. O documento mais recente, do Conass, diz que o desabastecimento atinge principalmente “portadores de doenças crônicas” e que causa “consequências sociais, clínicas, e não menos importante, econômicas”.

“Isso configura uma grande preocupação para os gestores estaduais no que diz respeito ao planejamento das ações de acesso e, principalmente, na qualidade e segurança do tratamento do paciente”, diz o texto do conselho, que solicita ainda que a pasta dê prioridade ao tema.

Secretário de Saúde do Pará e presidente do Conass, Alberto Beltrame afirma que o atual governo não é o único culpado pela crise de abastecimento e que ela é causada pela má gestão do ministério, que não consegue terminar licitações dentro do prazo nem fazer com que empresas distribuidoras honrem seus contratos.


— Estamos no pior momento da crise, que é quando de fato a prateleira está sem nada. É, possivelmente, o maior desabastecimento que já enfrentamos. Isso causa danos severos aos pacientes — diz Beltrame.

A reportagem teve acesso a relatórios detalhados de dez secretarias estaduais de saúde e a um outro, mais sintético, que traça o panorama em todo o país. Todos os estados, em maior ou menor escala, são afetados.

No Sudeste, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro já pediram ajuda ao governo federal em diversas ocasiões, mas continuam com as prateleiras vazias. No Rio de Janeiro, dados da Superintendência de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos da Secretaria de Estado de Saúde (SES) revelam que 11 medicamentos fornecidos pelo Ministério da Saúde estão com os estoques zerados.

Segundo o governo do Rio, a secretaria de Saúde obteve de Brasília o “compromisso com a normalização do abastecimento o mais breve possível”.

Em Pernambuco, 35 medicamentos fornecidos pelo ministério estão em falta ou com entregas em atraso; outros 11 constam como “saldo a receber”, sinalizando que o volume entregue não foi suficiente para atender a demanda. No Paraná, chega a 23 o número de remédios em risco de acabar.

Aumento dos estoques

No Norte, a escassez se repete: Rondônia tem 33 drogas já em falta ou prestes a acabar. Em Belém (PA), o Hospital de Oncologia passou a dispensar pacientes que precisam de tratamento contra o câncer.


— É muito difícil chegar para o paciente e dizer que você não tem nenhum frasco de medicamento no estoque. É uma crise que não pode se prolongar, ou passa a ser uma crise humanitária — lamenta Beltrame.

Segundo o presidente do Conass, uma portaria da Saúde estabeleceu o compromisso de manter estoques de três meses, mas sucessivas administrações vêm ignorando essa regra.

O ministério diz estar ampliando os processos licitatórios de compra para garantir o abastecimento por, no mínimo, um ano. Medidas emergenciais como o remanejamento de estoques e a antecipação da entrega de medicamentos por laboratórios contratados também estão sendo adotadas, segundo a pasta, para garantir o abastecimento imediato.

O órgão afirma que a distribuição de drogas como o micofenolato de mofetila e o micofenolato de sódio — usadas para prevenir a rejeição de órgãos transplantados — já está regularizada.

Na próxima semana, prossegue o ministério, serão regularizados os fármacos Imatinibe 100 mg e Imatinibe 400 mg, usados no tratamento de crianças com leucemia.


A Saúde afirma que todas as informações e dificuldades relacionadas aos processos de compra estão sendo compartilhadas com o Tribunal de Contas da União (TCU) e demais órgãos de controle, que têm acompanhado a situação do desabastecimento nos Estados.

Pacientes transplantados correm risco de perder órgãos por falta de medicamento


Moradoras da periferia do Recife, Jaqueline Vilela de Almeida, de 36 anos, e Andrea Carla da Silva, de 41, vivem todos os dias o mesmo drama: não conseguem acesso a medicamentos para tratar seus rins transplantados e temem ter que voltar, nos próximos meses, para a máquina de hemodiálise.

Ambas já sentem o órgão mais inchado e o corpo fraquejar de tanto perambular, sem sucesso, pelas unidades de saúde da cidade em busca das drogas que deveriam ser fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O drama das duas é compartilhado, em maior ou menor grau, por 90 mil homens e mulheres de todos os estados do país, segundo estimativas da Associação Brasileira de Transplantados.

Documentos obtidos pelo GLOBO junto a secretarias estaduais da saúde revelam que, desde o início do ano, o sistema federal de distribuição de remédios vive um aguda crise de desabastecimento, afetando principalmente os transplantados.

De um total de 134 drogas que são distribuídas obrigatoriamente pelo Ministério da Saúde , 25 estão com estoques zerados, sendo que pelo menos quatro delas são para atender a transplantados, evitando que o órgão recebido seja rejeitado pelo organismo.

Uma ação do Ministério Público Federal revela que 30 mil enxertos de coração, rim e fígado estão em risco apenas no estado de São Paulo, por causa do desabastecimento.

No último ano, 141 pacientes tiveram rejeição aguda ao órgão recebido devido à falta crônica de medicamentos, apenas em São Paulo, segundo dados do Hospital do Rim. Quatro enxertos foram dispensados recentemente em um único hospital da capital paulista. De acordo com associações que atendem a transplantados, ao menos três órgãos já foram perdidos em Recife e dez em São Paulo.

A ação movida pelo MPF alerta o Ministério da Saúde sobre o “risco catastrófico de morte para milhares de pacientes transplantados”.

Em decisão tomada no dia 9 de abril de 2019, com base na ação do MPF, o juiz federal Paulo Cezar Duran determinou que o ministério solucione o problema. Por meio de nota, o ministério afirmou que “mantém todos os esforços necessários ao cumprimento da decisão judicial”.

Risco para 30 mil pacientes
Em São Paulo, os medicamentos Micofenolato de Sódio e Tracolimo, essenciais para a adaptação dos órgãos transplantados, não foram entregues pelo governo federal na quantidade demandada, segundo a Secretaria estadual de Saúde.

O ministério nega e diz que a distribuição do Micofenolato de Sódio “está regularizada”. Quanto ao Tracolimo, diz que “as empresas contratadas não cumpriram os prazos de entrega”.

Segundo o MPF, a crise de abastecimento pode acarretar na “paralisação de transplantes para mais de 30 mil pacientes que estão na fila”.

— Como incentivar a doação, se o transplantado não tem acesso a remédios e não tem como manter o órgão? — questiona Edson Arakaki, presidente da Associação Brasileira de Transplantados.

Arakaki diz que, depois de o sistema funcionar por mais de 20 anos sem grandes intempéries, a crise na distribuição vem se agravando desde 2017, durante a gestão de Ricardos Barros no Ministério da Saúde.

— Naquele momento político, de contingenciamento, o ministro resolveu mudar o sistema de compra. Com isso, começou um momento muito dramático para os transplantados. Atualmente, todo mês falta remédio para este público. As pessoas vivem uma peregrinação para conseguir. As filas nos centros de dispensação são imensas.

Medo da ‘máquina’
O grande temor dos pacientes transplantados é voltar ao estágio anterior ao da recepção do órgão. No caso dos que receberam rins, significa voltar para a “máquina”, como eles se referem ao aparelho de hemodiálise.

Andrea Carla conta que fez diálise durante 20 anos, até conseguir, há seis, um órgão na fila de transplantes.

— De lá para cá, vivo uma nova vida. Cuido da minha saúde, do meu órgão. Mas, há três meses, estou sem remédio. Estou com muito medo de voltar para a “máquina”, de perder meu rim novamente.

Andréa tomava o Tracolimo, que atualmente está em falta em todos os estados. Como nunca conseguia acesso ao remédio, o médico receitou outra fórmula, que também começou a faltar. Ela devia tomar outros dois remédios regularmente contra a rejeição, mas ambos também estão em falta há cinco meses.

É o mesmo drama vivido por Jaqueline. Sem tomar regularmente os remédios há cinco meses, ela conta que está com os exames de urina alterados e seu rim, recebido de um doador morto, já começou a parar de funcionar, segundo diagnóstico médico.

— Tenho muito medo de voltar para a “máquina”. É um procedimento muito difícil.