sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Vacinas deixadas por Bolsonaro sem validade são queimadas; prejuízo é de mais de R$ 1 bilhão

 Incineração de insumos médicos é investigada pela Procuradoria-Geral da República. Desperdício foi de 39 milhões de doses, quase 5% do total comprado, sendo que o aceitável seria até 3%, segundo especialistas.


O Brasil queimou R$ 1,4 bilhão em vacinas contra a Covid-19 desde 2021. O valor é referente a mais de 39 milhões de doses que venceram sem serem utilizadas e precisaram ser incineradas, de acordo com dados do governo aos quais o g1 teve acesso (veja gráfico abaixo).

O fim da validade e a necessidade de descartar quase 40 milhões de doses foram revelados pela "Folha de S. Paulo" em março. Agora, a incineração de insumos médicos é investigada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O órgão apura se houve improbidade administrativa (quando agentes públicos causam prejuízos aos cofres públicos).

O desperdício, na visão de especialistas (leia mais abaixo), é consequência da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ue demorou para comprar e distribuir as doses, enquanto o próprio Bolsonaro empreendia uma cruzada contra as vacinas, se recusando a se imunizar e disseminando desinformação, como fez quando associou a vacina da Covid com a Aids. A CPI da Covid, que investigou as condutas do governo federal ao longo da pandemia terminou com o pedido de indiciamento dele por 9 crimes.

O total de vacinas incineradas representa quase 5% do total comprado pelo país. Segundo especialistas em logística na saúde, é comum o descarte de medicamentos vencidos, mas o índice está acima do considerado aceitável de até 3%.

👉 As primeiras vacinas foram queimadas em 2021, mesmo ano em que começou a imunização no país, e aumentaram em número em 2022, durante o governo Bolsonaro. Neste ano, já no governo Lula, a quantidade foi maior porque mais lotes de vacina venceram sem que houvesse tempo para dar outro destino aos insumos, chegando ao montante bilionário (veja gráfico abaixo).

🚨 Para especialistas, o grande número de vacinas vencidas se explica por problemas de logística, pela falta de campanha de imunização e por forte propaganda antivacina ao longo da pandemia de Covid.

Procurada, a assessoria de Bolsonaro disse que o ex-presidente não tinha gerência sobre o descarte de vacinas e que havia dado "autonomia plena para os ministros".

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazzuelo, que ficou à frente da pasta até março de 2021, não se manifestou.

Seu sucessor, o ex-ministro Marcelo Queiroga, disse que as compras foram definidas pelas áreas técnicas da pasta e que não tinha responsabilidade sobre o descarte.

A atual gestão do Ministério da Saúde afirma que "herdou um estoque de mais de 157,9 milhões de itens de saúde a vencer até o mês de julho equivalente a R$ 1,2 bilhão" e que criou um comitê para monitorar e mitigar perdas. (Leia os posicionamentos ao final.)

Problemas na logística e na aplicação

💉 Ao todo, o Brasil adquiriu 823 milhões de doses contra a Covid entre 2020 e 2023, segundo o Ministério da Saúde.

Após a compra, as vacinas eram distribuídas pelo governo federal aos estados, que as enviavam aos municípios.

Apesar da expertise do Sistema Único de Saúde (SUS) com o Programa Nacional de Imunização (PNI), que é referência internacional, houve uma série de problemas na entrega e na aplicação das vacinas ao longo da pandemia. Por exemplo:

Por que é aceitável queimar até 3% de insumos?

A logística de compra de insumos exige um cálculo que se baseia na projeção de demanda futura.

👉 Ou seja, no caso das vacinas, é observado o volume de pessoas que precisam do imunizante, o prazo de validade dos lotes e o prazo de entrega do fabricante para que sejam compradas doses em número suficiente até a remessa seguinte.

No entanto, é levada em consideração nesse cálculo a chamada "quebra de estoque", que é a possibilidade de uma margem de perda diante do volume comprado.

Isso porque, como se trata de uma projeção, o cenário pode não se concretizar por razões como problemas na distribuição.

Segundo Gonzalo Vecina, professor na Faculdade de Medicina da USP e especialista em logística de saúde, o limite considerado aceitável para a perda de insumos é de até 3%. No caso das vacinas de Covid, foram queimados 5% do estoque comprado.

Falta de campanha de imunização

"Isso é um desperdício. Em cálculos de administração de estoque, você aceita quebra de até 3%, isso é o máximo. Me assusta ver a quantidade de produtos bastante caros que acabaram sendo jogados na lata do lixo— Gonzalo Vecina, médico sanitarista especialista em logística de saúde

Na avaliação de Cláudio Maierovitch, que também presidiu a Anvisa e foi diretor de vigilância de doenças transmissíveis no Ministério da Saúde, a questão é que o cálculo de logística não podia prever a campanha antivacina do próprio governo federal.

De um lado, embora houvesse compra e distribuição de vacina, de outro, havia uma cruzada do então presidente Bolsonaro contra as vacinas, se recusando a se imunizar e disseminando desinformação sobre a vacina. A CPI da Covid, que investigou as condutas do governo federal ao longo da pandemia terminou com o pedido de indiciamento dele por 9 crimes.

Houve uma atitude clara do comando do governo de questionar o valor da vacina, de ser contra a vacina, insinuar que eram problemáticas e, de alguma forma, perigosas. Além disso, não houve investimento em campanhas e era até difícil saber quando estava na hora de vacinar quem. As informações eram desencontradas, não havia divulgação”, afirma Maierovitch.

Para o deputado estadual Carlos Lula, que durante a pandemia era secretário de Saúde do estado do Maranhão e chefiou o Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), os erros de logística aconteceram na fase mais crítica, mas não foi isso que impactou com mais força esse desperdício que houve.

"Aconteceram [os problemas], sim, lógico que aconteceram, sobretudo, naquela confusão inicial”, pondera, acrescentando que enfrentou também resistência dos municípios em vacinar.

Ele relembra, porém, que os secretários à época enfrentaram dificuldades porque "nunca sentiram o governo federal como aliado". "Foi muito difícil naquele momento pautar a vacinação dessa forma, porque era como se estivéssemos sempre remando contra a maré", diz.

Investigação da PGR

A investigação que corre na PGR para apurar a incineração de vacinas foi aberta em março deste ano.

Segundo a procuradoria, são apurados "possíveis atos de improbidade administrativa, com dano ao patrimônio, pelo descarte de medicações adquiridas pelo Ministério da Saúde que perderam sua validade nos últimos cinco anos".

Até o momento, foram tomados depoimentos de servidores, mas não se chegou ainda na fase de apontar responsáveis. Ao fim da investigação, a PGR poderá propor ação civil pública ou um termo de ajustamento de conduta (TAC).

Para Vecina, que foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a quantidade de vacinas incineradas evidencia um "problema de gestão gravíssimo no Ministério da Saúde" durante o governo Bolsonaro.

5 mil decretos sob análise

O professor de direito sanitário da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Aith é coautor de um estudo que analisou cerca de 5 mil decretos do governo Bolsonaro ligados ao combate da pandemia. O estudo foi tema do podcast O Assunto. 

Para ele, o desperdício de dinheiro público com a queima das vacinas é "consequência natural da política que estava sendo adotada".

Na avaliação dele, é possível enquadrar a queima de vacinas por perda de validade como crime contra o patrimônio público porque os gestores "promoveram gastos inúteis e deliberadamente não deixaram que esses recursos chegassem ao destino de política pública".

"Foi um interesse deliberado do governo federal em não promover a vacinação e, por isso, essas vacinas ficaram em estoque. Comprou para dizer que fez a parte dele, mas não se preocupou em distribuir e capacitar os estados e municípios para aplicar, de fato, no braço das pessoas— Fernando Aith, professor de direito sanitário da USP

Ele entende que, nesse caso, fica configurada improbidade administrativa, pois houve dolo dos agentes públicos, e crime contra a saúde pública.

"No final das contas, houve uma ação deliberada para evitar que as pessoas tivessem acesso a produtos necessários para a proteção da própria vida", diz.

O que diz o governo Bolsonaro

➡️ Assessor de Bolsonaro, o ex-secretário especial de Comunicação social Fabio Wajngarten afirmou ao g1 que o ex-presidente não tinha "nenhuma ingerência [interferência] no tema" ao ser questionado sobre a queima de vacinas de Covid. "Liberdade e autonomia plena para os ministros", respondeu.

➡️ Já o ex-ministro Marcelo Queiroga disse que o Ministério da Saúde "tomou todas as providências necessárias para conter a crise sanitária" e que as estimativas de compra de vacina "foram feitas pela área técnica" e que "não compete ao ministro da Saúde fazer essas estimativas".

Sobre a investigação da PGR, o ex-ministro afirmou que "todos devem responder pelos atos que praticam na administração pública". "Seguramente, as instâncias de controle estão apurando as responsabilidades devidas. Inclusive o que houve em estados e municípios", disse.

➡️ Procurado por meio de sua assessoria, o ex-ministro Eduardo Pazuello não se pronunciou.

O que diz a atual gestão do Ministério da Saúde

➡️ O g1 também pediu uma manifestação para a atual gestão do Ministério da Saúde, que enviou o posicionamento a seguir:

"A nova gestão do Ministério da Saúde herdou um estoque de mais de 157,9 milhões de itens de saúde a vencer até o mês de julho equivalente a R$ 1,2 bilhão.

Após uma série de ações estratégicas com o compromisso de minimizar as perdas de estoques de insumos, o Ministério da Saúde evitou o desperdício de mais de R$ 251,2 milhões em vacinas. O valor equivale a mais de 12,3 milhões de doses.

Para mais transparência da gestão da pasta, logo no início do ano foi instituído um comitê permanente para monitorar a situação e adotar medidas para mitigar perdas.

Também foi pactuado, junto aos estados e municípios, prioridade logística aos itens de menor prazo de validade, assim como articulação via cooperação internacional para doações humanitárias.

No caso das vacinas, somam-se a essas ações, a retomada das campanhas de vacinação e adoção de estratégias para ampliar cobertura vacinal no país.

Também foi antecipada a campanha de multivacinação, voltada para crianças e adolescentes."

Por Poliana Casemiro e Arthur Stabile G1