sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ABSURDO: A cada 13 dias, um caso de estupro ocorre dentro de unidades de saúde de SP

 
Rafaella estuprada dentro de hospital em São Paulo e ao fundo sua mãe Rosineide

Em abril de 2018, a estudante de enfermagem Rafaella Antunes Ferreira foi internada na UTI do Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, gerido pelo Estado de São Paulo. Aos 22 anos, ela sofria de um distúrbio renal que a deixava inchada e sem poder andar ou falar direito. Presa por muitos fios ao leito hospitalar e mantida com respirador, mas ainda consciente, Rafaella relatou à mãe ter sido estuprada duas vezes no hospital. 

Ela morreu em maio daquele ano em decorrência da doença. Até hoje, porém, a autônoma Rosineide Antunes de Souza, 49, luta por justiça e tenta provar o crime que a filha relatou. O boletim de ocorrência feito pela mãe é um dos 82 casos de estupro (na forma tentada ou consumada) registrados entre janeiro de 2018 e outubro de 2020 dentro de locais da capital paulista que prestam serviços de saúde - como casas de repouso, clínicas psiquiátricas, consultórios e hospitais. Os dados são exclusivos e foram obtidos pelo  jornal Barão de Inohan por meio da Lei de Acesso à Informação.

Os números apontam que, em média, há um registro de estupro dentro de um ambiente de saúde em São Paulo a cada 13 dias. Os locais de maior ocorrência foram hospitais (56), clínicas e consultórios (12) e postos de saúde (5). Desse total, 50 casos (61%) foram registrados como estupro de vulnerável, quando a vítima é menor de 14 anos ou não consegue oferecer resistência. As idades variam de 1 a 68 anos.

"É uma das mais profundas desumanidades abusar de alguém que não tem mesmo uma condição de reagir e está submetida aos seus cuidados", analisa a advogada Isabela Del Monde, uma das fundadoras da Rede Feminista de Juristas e coordenadora do movimento #MeTooBrasil.

Ao todo, durante esse mesmo período, a polícia registrou 7.688 casos de estupro na capital, uma média de 226 por mês. Em 2019, reportagem do site Intercept reuniu dados de nove estados brasileiros para mostrar que foram registraram 1.734 casos desse tipo entre 2014 e 2019. 

Minha filha não merecia isso

Moradora de Interlagos, extremo Sul de São Paulo, Rosineide gravou a filha confirmando o crime. Nelas, Rafaella está debilitada, com traqueostomia e uma sonda. Ela fala com muita dificuldade, mas se comunica balançando a cabeça. Para a mãe, ela diz quem é a pessoa e quantas vezes o crime aconteceu.

Dias antes de minha filha morrer, estava ao seu lado quando ela começou a se mexer muito, meio que se debater, incomodada com a presença de um dos médicos da equipe. Ela mal se comunicava, mas falava repetidas vezes a palavra 'abuso'. Apontei para órgão dela e perguntei: 'Alguém fez algo aqui?'. Ela balançou a cabeça de forma afirmativa.

Rosineide prossegue. "Minha filha usava fralda, e eu comecei a perguntar se alguém a tirou, e passou a mão nela. E ela sempre balançando a cabeça. Até eu perguntar: 'Ele colocou o pinto?', e ela balançou a cabeça, confirmando de novo."

A autônoma conta que teve medo de denunciar porque a filha estava mal de saúde, e isso poderia, de alguma forma, prejudicar o tratamento de Rafaella. Por isso decidiu gravar a conversa que teve com ela. Chegou a pensar em pedir transferência para outro hospital. Mas a filha morreu logo depois.

"No ano passado, procurei o Ministério Público e denunciei. Levei os vídeos dela, contei tudo que sabia, mas até hoje não tenho uma resposta. Minha filha foi estuprada em um hospital. Ela não merecia isso", diz a mãe, antes de descrever com carinho a filha.

Ela concluiu o curso de auxiliar e técnico em enfermagem, e passou na USP. Ia começar a estudar lá quando tudo aconteceu. Tinha o sonho de fazer medicina, mas disse que seria mais fácil entrar pra enfermagem primeiro. Queria cuidar de mim, porque tive três infartos, tomo muitos medicamentos. Minha filha era tão inteligente que pegava as coisas no ar. Professor até chamava atenção para dar oportunidade para os outros alunos responderem...

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, o caso segue em investigação no 40º DP (Vila Santa Maria). O suspeito e as testemunhas foram ouvidos, segundo a pasta, mas o Ministério Público pediu em novembro nova apuração.

Registro aumentaram durante a pandemia

Além do caso de Rosineide, há mais dois boletins de ocorrência por estupro contra o Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde informa que abriu uma apuração interna para investigação, e que segue à disposição para contribuir com as investigações e à disposição para esclarecimentos à família.

Segundo a secretaria, o profissional ainda atua na unidade, "porém, em se constatada a infração/violência, a unidade irá adotar todas as providências cabíveis, que pode ser o afastamento ou desligamento de profissionais".

Nem todos os locais que constam dos boletins de ocorrência são públicos. Dos 82 registros pesquisados, o Barão de Inohan contabilizou 22 casos em unidades privadas e 21 em lugares geridos pelo governo. O restante dos registros, enviados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo com base nos BOs, não tinha endereço.

Entre aqueles sob gestão do estado ou município estão Pérola Byington, referência, inclusive, no atendimento à mulher, Icesp (Instituto do Câncer), UBS da Sé, Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch e CAPS Grajaú, entre outros. Entre os privados, há casos registrados no Hospital Albert Einstein, Beneficiência Portuguesa Mirante e Hospital Santa Clara.

Os dados mostram que em 2018 foram registrados 25 boletins de ocorrência (2,1 por mês). No ano passado, esse número subiu para 28 casos (2,3 por mês) e, em 2020, até 31 de outubro, a polícia registrou 29 ocorrências, quase três por mês (2,9), indicando aumento no número de registros durante a pandemia de coronavírus.

Não foi possível saber quais desses casos registrados ainda estão sob investigação, como o de Rosineide, foram arquivados ou não deram origem a investigação.

Polícia investiga se há conivência dos hospitais

A coordenadora das delegacias da mulher de São Paulo, Jamila Jorge Ferrari, diz que já acompanhou casos ocorridos em clínicas de idosos ou para dependentes químicos. Segundo ela, quando fatos como esses chegam à polícia, são tomadas providências específicas, como verificar se houve conivência com os responsáveis pelo local.

Mas falando num contexto geral de estupro, independentemente do local da ocorrência, Jamila lista que além da necessidade de maior engajamento da sociedade, como ONGs e escolas, para que os casos cheguem à polícia, é preciso trabalhar mais a prevenção, como educar as crianças desde cedo a não deixar ninguém tocá-las.

Ela também faz uma avaliação do trabalho da corporação quanto ao atendimento nesse tipo de caso: "Como instituição temos que capacitar nossos policiais a entenderem o que significa a mulher indo parar na delegacia. Sensibilizar policiais homens no sentido de que para a vítima procurar a delegacia ela teve que ter força e coragem. E independentemente do que pensa o policial, ele não tem que verbalizar sua opinião. Temos que bem atender e acolher. E se isso não acontece, se há mal acolhimento, a gente precisa que seja denunciado, ainda que pela imprensa. Assim conseguimos melhorar". 

A advogada Isabela Del Monde explica que em casos como esse é sempre recomendado que se una o máximo de provas que apontem o crime. E que a vítima procure todos os canais possíveis, como polícia, Ministério Público, ou ainda ouvidoria do estabelecimento, se houver, e o Procon, já que há relação de prestação de serviço com esses espaços.

"Notou que está com marca roxa? Tira uma foto do hematoma. E se a paciente conseguir falar, registrar o que ela está falando. E buscar ajuda jurídica. É importante que se busque uma advogada ou rede de atendimento para ter orientação, porque são esses profissionais que saberão, por exemplo, quais provas são boas."

O outro lado

Sobre os hospitais estaduais e municipais citados, tanto a Secretaria Municipal de Saúde como a Secretaria da Saúde de São Paulo dizem em nota repudiar qualquer ato de violência contra paciente e atitudes que fujam aos protocolos de humanização previstos no SUS. Falam ainda que os hospitais são orientados a tomar todas as medidas cabíveis a partir do conhecimento de algum caso, respeitando a confidencialidade da identidade dos envolvidos.

Explicam também que é instaurada uma sindicância para apuração interna dos fatos, sendo que cada caso é apurado individualmente por parte da diretoria de cada unidade. E caso seja constatada uma infração/violência, as unidades tomam todas as providências cabíveis, incluindo o desligamento ou afastamento de profissionais.

A secretaria municipal acrescenta ainda que quando uma vítima não tem endereço fixo e está em situação de rua, o endereço colocado no boletim de ocorrência é o da Unidade de Saúde ou Assistência Social onde a mesma foi acolhida e atendida, não sendo esse o endereço onde os fatos necessariamente ocorreram.

No caso da UBS Sé, a pasta afirma que não houve nenhum caso de estupro nas dependências da unidade, mas um caso de uma vítima em situação de rua (que, por não ter endereço fixo, é remetido para lá). Mas nas informações às quais o Barão de Inohan teve acesso, a vítima, de 28 anos, é estudante e o caso consta como estupro de vulnerável.

No caso do CAPS Grajaú, onde foi registrado tentativa de estupro contra uma mulher de 40 anos, a secretaria afirma que foi um caso de assédio sexual cometido por um auxiliar de enfermagem contra uma funcionária. A vítima solicitou transferência, e o profissional acusado foi demitido.

Sobre o Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch (M'Boi Mirim), onde teria acontecido estupro contra uma mulher de 29 anos, a pasta explica que houve relação entre dois pacientes psiquiátricos internados na unidade, considerados intelectualmente incapazes, mas que uma apuração não comprovou conjunção carnal, ato libidinoso ou violência. Diz ainda que, após o ocorrido, foram aprimoradas as medidas de vigilância da ala psiquiátrica.

Quanto à Beneficência Portuguesa, locam de um boletim de ocorrência feito por uma paciente de 58 anos por tentativa de estupro, a entidade diz prezar pela segurança de todos aqueles que se relacionam com a instituição e, por isso, repudia atos que comprometam a integridade física ou emocional de qualquer pessoa. Afirma ainda que mantém um código de conduta, e que, por estar comprometida com o sigilo, não pode compartilhar nenhuma informação sobre o atendimento prestado aos pacientes. 

No Hospital Santa Clara, a mãe de uma paciente de 19 anos, internada em fevereiro de 2019 para um exame, denunciou à enfermeira que a filha sofrera assédio enquanto estava na sala de recuperação da anestesia. No boletim de ocorrência registrado na 24º DP (Ponte Rasa), o caso consta como estupro de vulnerável.

Ao saber do relato, diz o hospital em nota, a unidade deu todo suporte e orientação jurídica, e apesar da negativa do funcionário de ter cometido o crime, o afastou até a conclusão da investigação. Afirma ainda que o hospital possui padrões de segurança do paciente estabelecido por regras da Anvisa e que a equipe de enfermeiros passa por período de treinamento, mas que fatos pontuais como esse fogem do controle. 

O Hospital Albert Einstein não se manifestou.